Cezar Taurion * Publicada em 05 de março de 2017 às 09h40 no site CIO.
Recentemente, li um artigo que me chamou muita atenção: “JPMorgan Software Does in Seconds What Took Lawyers 360,000 Hours”. Descreve a iniciativa do banco americano em um projeto de IA, chamado COIN (Contract Intelligence), que realiza automaticamente análises de acordos de empréstimos, tarefa que consome, em média, 360 mil horas de trabalho por ano de advogados e agentes de crédito. Além de revisar os documentos em segundos, os software é menos propenso a erros e nunca entra em férias!
O JP Morgan está em pleno processo de transformação digital e uma frase de seu CIO é emblemática: “Anything where you have back-office operations and humans kind of moving information from point A to point B that’s not automated is ripe for that” . O impacto da transformação digital e da IA nos negócios e na sociedade será a de um devastador tsunami e não deve, sob nenhuma hipótese, ser negligenciado. É um tema que venho pesquisando já há algum tempo e já escrevi diversos posts que se relacionam diretamente com esse exemplo, mas cito aqui dois aqui: “A Inteligência Artificial e os robôs vão transformar a economia” e “Olhar para o futuro próximo é olhar para a Inteligência Artificial”. Aliás, aglutinei vários posts que escrevi sobre o tema em “O impacto transformador da IA: estamos preparados?”.
Para entendermos os impactos desta transformação, recomendo um livro, de leitura obrigatória: “The New Geography of Jobs”, de Enrico Moretti. Li, reli e tirei muitos insights dele. Embora o autor tenha centrado o tema nos EUA, serve de modelo para ser aplicado à transformação da sociedade global.
Muitos analistas de indústria e economistas argumentam que, como as mudanças tecnológicas do passado, a atual revolução digital, fundamentada em IA, não vai gerar desemprego em larga escala, pois o trabalho será realocado, mais cedo ou mais tarde. Assim, por esta argumentação, mesmo que a robótica tenha começado a deslocar um grande número de trabalhadores, os empregos dependentes de características humanas como criatividade, inteligência emocional e habilidades sociais (incluindo ensino, orientação, enfermagem e assistência social, por exemplo) podem se tornar mais numerosos.
Tenho outro ponto de vista sobre as implicações do emprego intensivo da IA. No meu entender, o potencial de disrupção simultânea e rápida, juntamente com a amplitude de funções humanas que a IA pode replicar com mais rapidez e eficiência, pode sim ter profundas implicações para o mercado de trabalho. Os executivos das empresas, os gestores públicos e a academia devem considerar seriamente a possibilidade de milhões de pessoas, no mundo todo (e aqui no Brasil!), estarem em risco de desemprego, caso essas tecnologias sejam amplamente adotadas.
Não creio que a próxima Revolução Industrial (a chamada Quarta Revolução Industrial) irá replicar o passado, simplesmente porque a rápida adoção em massa da robótica e da IA ameaça destruir muitas indústrias quase simultaneamente, sem dar tempo de recuperação à economia e a sociedade em geral.
Os avanços da robótica podem ser tais que, de repente, a maioria, senão todas as funções humanas básicas envolvidas no trabalho manual poderiam ser realizadas de forma mais eficaz e mais barata por máquinas, com a vantagem destas serem capazes de trabalhar continuamente com um custo marginal mínimo. Um relatório recente da Deloitte concluiu que cerca de um terço dos empregos no Reino Unido estão em "alto risco" de serem deslocados pela automação nas próximas duas décadas.
O que difere fundamentalmente a Quarta Revolução Industrial das anteriores é sua velocidade e amplitude. Na Revolução Industrial, o ritmo de adoção de novas tecnologias foi muito mais lento. Por exemplo, as ferrovias substituíram o cavalo como meio de transporte, com as consequentes perdas de emprego para os cocheiros, os ferreiros e os fabricantes de carruagens, mas a sua disseminação foi lenta, levando várias décadas para ganhar tração, em parte devido às volumosas quantidades de investimento necessário em instalações, maquinário e infraestrutura. Assim, houve tempo suficiente para as economias se adaptarem, evitando períodos de desemprego em massa.
Os automóveis, aviões e os computadores, por sua vez, criaram novas funções. Algumas já desapareceram com a evolução tecnológica, como os navegadores e engenheiros de voo nas aeronaves. Outras, como motoristas estão em risco de extinção com a adoção dos veículos autônomos.
As tecnologias digitais se disseminam exponencialmente e não linearmente, como as das revoluções anteriores. Quanto mais rápido surgirem as novas ondas de tecnologia e quanto mais baratas elas forem para serem implementadas, mais ampla será sua difusão, e mais rápida e profunda será a taxa de perda de emprego, com menos tempo de adaptação para as economias. Infelizmente, muitas vezes essas tecnologias passam despercebidas, pois uma tecnologia que evolui exponencialmente, em seu início, confunde-se com uma evolução linear.
Mesmo dobrando a períodos curtos, quando começa, representa pouco. Por exemplo, quando elas tem participação de mercado de 0,1%, 0,2%, 0,4%..., nem aparecem nas estatísticas. Quando começam a chamar atenção, com 1%, 2%, 4%, ainda são vistas de forma simplista - “menos de 10% do mercado e vai levar tempo para ser uma tecnologia disseminada”. Aí está o maior dos enganos. Pensamos linearmente. E somos atropelados pela exponencialidade. De 10% vai para 20% e em pouco tempo temos 60% a 80% do mercado.
Olhemos um setor como varejo e distribuição. Em um futuro não muito distante, a maioria dos bens de consumo poderá ser encomendada online e entregue por veículos autônomos ou drones. Os gigantescos armazéns nos quais as mercadorias estão armazenadas poderão ser quase inteiramente automatizados. O exemplo da Amazon (“Amazon now has 45,000 robots in its warehouses”), mais cedo ou mais tarde vai ser copiado pelo mercado de qualquer país, uma vez que estamos em um mundo globalizado e a estrutura de custos e eficiência de um país conta muito na competição global.
O tempo e a magnitude dessas mudanças estruturais para a economia são extremamente difíceis de prever. Existem ainda grandes diferenças entre economias dos países desenvolvidos e a dos países em desenvolvimento. E mesmo entre estes, as diferenças são muito grandes. A tentativa de reuni-las sob um termo comum, Brics, que no fundo foi uma invenção de um economista interessado apenas em investimentos, transformada artificialmente em grupo diplomático por decisão política, se mostrou uma falácia.
A velocidade com que as economias desenvolvidas adotam a robótica e IA suplanta em muito a dos países em desenvolvimento, como o Brasil. As nossas dificuldades, principalmente em educação e regulação, são alguns dos inúmeros fatores limitantes. Cada país tem ritmo diferente, inclusive porque tem demandas diferentes. Por exemplo, um fator que estimula o investimento em tecnologias robóticas é a demografia. O Japão é emblemático deste caso. O país tem experimentado uma diminuição da população desde 2010, refletindo seus baixíssimos níveis de imigração, e taxas de fertilidade decrescentes desde a década de 1970. Com a população (e mão-de-obra) diminuindo em até um quinto nos próximos 50 anos, os incentivos para investir em tecnologia de automação são, obviamente, elevados. Portanto, não é surpreendente que o Japão tenha uma das maiores indústrias robóticas do mundo. Muitos tipos de robô já estão comercialmente disponíveis, incluindo robôs humanóides, androides e robôs domésticos, além, é claro, de robôs industriais. Os cidadãos, incluindo idosos, estão cada vez mais familiarizados e confortáveis nas interações com eles.
Volta e meia lemos argumentos que os robôs só podem executar um número finito e bem definido de tarefas, idealmente em ambientes estritamente controlados. Assim, os robôs podem ser usados extensivamente em armazéns ou fábricas, mas não para interagir de forma inteligente ou empática com seres humanos. E nós, os seres humanos, teremos sempre uma vantagem absoluta sobre as máquinas na realização dos muitos tipos de trabalho que envolvem habilidades cognitivas e de comunicação. Mas, o impacto não será apenas nas tarefas de menor qualificação, como motoristas. Vejam este instigante texto, “The 5 Jobs Robots Will Take First”. Vale a pena ver o curto vídeo de uma entrevista do autor na TV e a reação do entrevistador quando lê que entre as funções que tendem a desaparecer estão as de jornalistas e repórteres: “basically us?!!”. Se você riu, não deve... Leia “AI learns to write its own code by stealing from other programs”. Desenvolvedores de programas também estão começando a aparecer na lista!
O fato é que a tecnologia de Inteligência Artificial está avançando muito rapidamente no desenvolvimento de máquinas capazes de imitar a inteligência humana. Um sistema de IA, o AlphaGo, já bateu os melhores jogadores do mundo de "Go". Dado que o jogo médio tem um número quase infinito de resultados, o computador deve imitar habilidades cognitivas, como a intuição e estratégia, em vez de se basear exclusivamente na força bruta analisando todas as sequências de movimentos plausíveis, que é como os computadores foram programados para vencer os campeões de xadrez há quase vinte anos. Vejam este artigo “Google’s AlphaGo AI secretively won more than 50 straight games against the world’s top Go players”. E depois do Go, o pôquer! A experiência do Libratus, da Universidade Carnegie Mellon, “An AI Poker Bot Has Whipped the Pros”, mostra que jogos cada vez mais complexos passam a ser dominados pela IA.
A IA está rapidamente se tornando a tecnologia fundamental em áreas tão diversas como veículos autônomos e negociações financeiras. Algoritmos de Machine Learning já estão rotineiramente incorporados nas ofertas de serviços móveis e online. As implicações são profundas:
1 - Como sabem falar, ler textos, e absorver e reter conhecimento enciclopédico, as máquinas podem interagir de forma intuitiva e natural, em uma variedade de tópicos, com uma profundidade considerável.
2 - Como podem identificar objetos e reconhecer padrões ópticos, como rostos em fotografias, as máquinas podem deixar o mundo virtual e se juntar ao mundo real.
Sistemas de IA já conseguem diagnosticar cânceres específicos com mais precisão do que os radiologistas. Os advogados do futuro farão um trabalho muito diferente do que fazem hoje, e, portanto, terão que passar por uma educação totalmente diferente da atual.
Para as empresas, o uso de IA já não é uma opção futurista, mas uma realidade que pode ser decisiva em termos de competitividade.
As empresas que buscam alcançar vantagem competitiva através da IA precisam entender as implicações de máquinas que podem aprender, conduzir interações humanas e se engajar em funções de alto nível, em escala e velocidade incomparáveis com os processos atuais. Elas precisam identificar o que as máquinas podem fazer melhor do que os seres humanos e vice-versa, desenvolver papéis e responsabilidades complementares para cada um e redesenhar os processos de acordo com a intensidade de aplicação da IA na organização.
A IA vai requerer uma nova estrutura organizacional, novos processos e novos modelos mentais serão desafiadores de implementar. As empresas precisam adotar maneiras adaptativas e ágeis de trabalhar e definir estratégias comuns em sinergia com startups e aos pioneiros na área. Em resumo, os executivos, começando pelos CEOs, precisam identificar onde a IA pode criar vantagem mais significativa e sustentável.
Há uma percepção de que a maioria das economias dos países desenvolvidas está mal preparada para a Quarta Revolução Industrial. Em economias mais atrasadas, como a brasileira, essa percepção é realidade! Isso pode significar o deslocamento de milhões de empregos, a destruição de muitas empresas hoje sólidas e tradicionais que serão lentas em se adaptar e um grande aumento na desigualdade de renda na sociedade. Um relatório do World Economic Forum, “The Future of Jobs: Employment, Skills and Workforce Strategy for the Fourth Industrial Revolution”, mostra cenários preocupantes.
Infelizmente, percebo que, aqui no Brasil as discussões sobre o efeito da IA e seus impactos continuam muito distantes. Nada se ouve sobre o assunto pelos legisladores e gestores públicos, pouco se fala nas empresas, e em grande parcela da academia o assunto está restrito a poucos pesquisadores de ciência da computação. Sim, no Brasil estamos bem atrasados. Mas é um grande equívoco subestimar os riscos decorrentes da disseminação destas novas tecnologias.
(*) Cezar Taurion é head de Digital Transformation da Kick Ventures e autor de nove livros sobre Transformação Digital, Inovação, Open Source, Cloud Computing e Big Data
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