segunda-feira, 3 de julho de 2017

Brasileiro conta como ajudou a criar componente para o futuro computador neuromórfico

Brasileiro conta como ajudou a criar componente para o futuro computador neuromórfico
A sinapse artificial ainda é grande, mas poderá ser miniaturizada usando as técnicas de litografia padrão da indústria.[Imagem: L.A. Cicero]
Brasil no meio
Há poucos dias, uma equipe da Universidade de Stanford, nos EUA, anunciou a criação de uma sinapse artificial orgânica que pode viabilizar processadores neuromórficos, processadores que trabalham de forma mais parecida com o cérebro humano.
A criação desse componente, chamado enode (Electrochemical Neuromorphic Organic Device, ou dispositivo eletroquímico orgânico neuromórfico), contou com a participação do brasileiro Gregório Couto Faria, do Instituto de Física da USP em São Carlos (IFSC-USP).
Retornando ao Brasil, Gregório explicou mais detalhadamente as características do novo componente: "Apesar de muito simples, o enode apresenta uma propriedade típica das estruturas neurais, que é a memória multinivelada [com múltiplos níveis]. Cada unidade do nosso cérebro manifesta cerca de 100 estados de potenciação, que correspondem a diferentes níveis de memória. Em nosso experimento, variando a voltagem, conseguimos mudar a condutividade do material ativo, e, assim, acessar também padrões diferenciados de memória."
Ele contou que o componente é constituído essencialmente por um polímero conjugado, que é capaz de conduzir não apenas elétrons, mas também íons. Isso lhe possibilita atuar como tradutor - tecnicamente, como um transdutor - de corrente elétrica para corrente iônica, o que lhe permite mimetizar os sistemas biológicos, como o cérebro humano. "Esses sistemas comunicam-se predominantemente por meio de fluxos iônicos. Quando um neurônio interage com outro, o que ele faz é abrir canais para a passagem de íons e, assim, polarizar o ambiente ao redor. Ao reproduzir essa função, nosso polímero estabelece uma interface entre sistemas artificiais e sistemas vivos," informou Gregório.
O desenvolvimento da eletrônica de polímeros conjugados rendeu o Prêmio Nobel de Química de 2000 a Alan Heeger (Estados Unidos), Alan MacDiarmid (Nova Zelândia) e Hideki Shirakawa (Japão). Na família dos polímeros conjugados, há uma classe específica de condutores orgânicos mistos. Uma das vantagens desses materiais em relação aos seus análogos inorgânicos é que eles têm uma morfologia muito porosa, semelhante à da esponja. Quando imersos em um meio líquido com a presença de íons, absorvem a solução em seus interstícios. E sua rede de canais intersticiais transforma-se no sistema viário pelo qual os íons podem trafegar.
Brasileiro conta como ajudou a criar componente para o futuro computador neuromórfico
O componente eletroiônico foi usado para simular o conhecido experimento dos cães de Pavlov. [Imagem: Yoeri van de Burgt et al. - 10.1038/nmat4856]
Computação neuromórfica
Uma aplicação imediata seria utilizar o enode em sensores para detectar a presença de determinadas substâncias ou em próteses para estimular tecidos vivos, como as células cardíacas, por exemplo. Outra aplicação, muito mais ambiciosa, é valer-se da propriedade do material para projetar e produzir circuitos eletrônicos capazes de imitar estruturas biológicas, como os neurônios.
Durante o trânsito iônico, ocorrem reações de oxidação ou redução do polímero pelos íons. Trata-se do fenômeno que, na ciência dos materiais, recebe o nome de "dopagem". O ganho (na oxidação) ou a perda (na redução) de elétrons afeta a condutividade elétrica do material. E a condutividade pode ser modulada pela variação da tensão aplicada. "É isso que possibilita ao dispositivo apresentar diferentes níveis de memória, configurando assim uma das primeiras condições para a elaboração de uma estrutura neuromórfica", explicou o pesquisador.
Unidades neuromórficas integradas em redes neurais constituem a opção mais ousada para superar o atual impasse da computação, que não consegue mais manter o ritmo de ganho na velocidade de processamento que se observou até agora.
"Uma das propostas para superar o impasse é a verticalização das unidades de memória. É o mesmo princípio que se observa na dinâmica urbana. Quando a área para expansão das cidades chega a um limite, elas começam a se verticalizar. O mesmo tenderia a ocorrer nos processadores. Outra saída, mais inovadora, é a substituição da computação de tipo Von Neumann [referência ao matemático húngaro de origem judaica John von Neumann (1903 - 1957)], adotada desde os primórdios da revolução da informática, por uma computação neuromórfica, que busca mimetizar o funcionamento do cérebro," ponderou o pesquisador.
Memória multinivelada
Em vez dos bits 0 ou 1 da computação tradicional, na computação neuromórfica, cada unidade básica poderia exibir vários estados possíveis: o "sim", o "não" e diferentes tipos de "talvez". Além disso, as redes neurais apresentariam padrões de plasticidade e capacidade de aprendizado cada vez mais semelhantes aos das estruturas biológicas. Isso significa que muitas unidades diferentes poderiam se sincronizar, de modo que o padrão elétrico de uma seria aprendido e assumido por outra.
"Ao lado da memória multinivelada, a capacidade de aprendizado é uma característica muito importante do enode", sublinhou Gregório. "Para checar essa capacidade, aplicamos ao dispositivo o teste 'Cachorro de Pavlov'."
O teste, baseado nos experimentos realizados pelo fisiologista russo Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936), associa a oferta de comida ao soar de um sino. Depois de vivenciar tal situação, o cão, que saliva instintivamente ao ver ou cheirar a comida, passa a salivar também cada vez que ouve o sino, mesmo na ausência da comida.
"O que fizemos foi reproduzir esse tipo de condicionamento animal utilizando dois sistemas neuromórficos, um relativo à visão (mimetizando a visão da comida), outro relativo à audição (mimetizando a audição do sino). A variação de condutividade em função do potencial elétrico, que ocorria no sistema de visão, foi 'aprendida' pelo sistema de audição, quando os dois sistemas foram integrados", descreveu o pesquisador.
Parece complicado. Mas, no fundo, tudo se resume à dopagem da estrutura do polímero pelo fluxo iônico.
Brasileiro conta como ajudou a criar componente para o futuro computador neuromórfico
O avanço na exploração das correntes iônicas está levando à emergência de um novo campo, denominado ionotrônica, uma "eletrônica" movida a íons. [Imagem: Mikko Raskinen/Aalto University]
Computador neuromórfico
Os computadores atuais, de tipo Von Neumann, já são capazes de aprender, por tentativa e erro. É o que se chama, em linguagem técnica, de "aprendizado de máquina", e já ocorre até mesmo nos celulares.
Foram técnicas de aprendizagem de máquina que levaram aos programas que derrotaram o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov, em 1997, que permitiram que o supercomputador Watson derrotasse os dois campeões do programa Jeopardy em 2011, e, em 2016, que o campeão de Go, Lee Sedol, fosse derrotado pelo programa AlphaGo.
Porém o que se busca agora é outro tipo de aprendizado, baseado não no acúmulo de bytes em máquinas gigantescas, mas em unidades de processamento multiniveladas, integradas em redes capazes de mimetizar a plasticidade do cérebro humano.
O componente construído por Gregório e seus colegas ainda possui tamanho macroscópico, da ordem de milímetros. Porém ele é passível de miniaturização em escala nanométrica por meio de fotolitografia. "Nosso grande objetivo é conectar vários dispositivos neuromórficos e mimetizar redes neurais capazes de executar funções cada vez mais complexas", resumiu Gregório. O horizonte é o computador neuromórfico.

Bibliografia:

A non-volatile organic electrochemical device as a low-voltage artificial synapse for neuromorphic computing
Yoeri van de Burgt, Ewout Lubberman, Elliot J. Fuller, Scott T. Keene, Gregório Couto Faria, Sapan Agarwal, Matthew J. Marinella, A. Alec Talin, Alberto Salleo
Nature Materials
DOI: 10.1038/nmat4856

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